Cheguei à conclusão de que, nessa música, Zé Ramalho fala do casamento e da traição. Mas afinal, o que é trair? E, principalmente, por que trair? Me parece que, certas vezes, Zé Ramalho quer nos mostrar que a traição é inevitável.
Enfim, comecemos pelo início, pelos primeiros versos da primeira estrofe.
Oh, eu não sei se eram os antigos que diziam
em seus papiros, Papillon já me dizia
que, nas torturas, toda carne se trai;
que, normalmente, comumente, fatalmente, felizmente, displicentemente,
o nervo se contrai... com precisão.
Fica mais fácil entender esses versos se soubermos quem foi Papillon, um homem que era muito mais do que um prisioneiro francês cumprindo pena na Guiana Francesa há algumas décadas atrás.
Injustamente acusado pelo assassinato de um gigolô, Papillon tinha pena de prisão perpétua a ser cumprida na Guiana Francesa, à época colônia da França. No pátio do presídio, logo foi prontamente avisado de que qualquer tentativa de fuga seria punida com o prazo de dois anos em solitária e, caso houvesse reincidência, esse prazo subiria para cinco anos.
Entretanto, Papillon não tinha nada a perder. Com a ajuda de seu aliado Louis Dega, realizou sua primeira tentativa de fuga. Foi pego e mandado para a solitária, onde acabaria morrendo antes que se findassem os dois anos. Mas Dega, que a essa altura já o estimava muito, conseguiu infiltrar cocos na água que lhe era dada todos os dias pelos guardas, ajudando-o a ter forças para sobreviver.
Papillon, porém, foi descoberto outra vez. Lhe deram duas opções: dizer quem o tinha enviado os cocos ou passar seis meses de sua pena com a comida reduzida à metade e em total escuridão. Papillon ficou com a última. E isso explica estes primeiros versos.
Apesar de torturado pela fome, pela fraqueza, Papillon não traiu seu companheiro, mas ele, nesse tempo, pensou seriamente em fazê-lo. É natural, é normal do ser humano trair quando submetido a pressões e situações como essa, e ele já sabia disso.
Nos aviões que vomitavam pára-quedas,
nas casamatas, casas vivas, caso morras
e, nos delírios, meus grilos temer:
o casamento, o rompimento, o sacramente, o documento,
como um passatempo quero mais te ver... com aflição.
Mas a traição que Zé Ramalho comenta nessa música não diz respeito à lealdade, mas à fidelidade. A sua tortura não é física, mas mental, psicológica, sexual. É na pele de homem casado que deseja uma outra mulher que Zé nos fala.
A libido confronta-se com a razão. Poderia trair e acabar logo com isso. Mas tudo tem consequências. Para decidir-se, precisa equilibrar tudo em uma balança emocional: o casamento, o rompimento, o sacramento, o documento e o desejo de ver, de ter quem realmente quer.
Meu treponema não é pálido nem viscoso.
Os meus gametas se agrupam no meu som.
E as querubinas, meninas, rever.
Um compromisso submisso, rebuliço no cortiço,
chame o Padre Ciço para me benzer... com devoção.
Nos versos desta última estrofe, quero chamar uma atenção especial para a primeira frase. O treponema cantado por Zé Ramalho faz referência ao treponema pallidum, o agente causador da sífilis. E citar a doença nesta estrofe é importante para a sua compreensão. A sífilis seria, para Zé Ramalho, um impedimento ao sexo. Mas o seu treponema (o que lhe atrapalha o sexo) não é a sífilis, visto que não é pálido nem viscoso. Podemos, então, subentender que tal impedimento, como já é cantado em todo o decorrer da música, é o casamento.
Podemos ter ainda mais certeza de que essa música fala do desejo incontrolável de um homem casado por uma mulher, que não a sua, quando Zé nos diz ter agrupado os seus gametas em seu som, sua música.
Sucede que o eu lírico acaba por trair, não só à sua mulher, mas também a si mesmo. É então que reconhece o seu pecado e anseia por perdão, não só vindo de sua companheira, como também o perdão divino.
Muito bom...
ResponderExcluirParabéns você foi perfeito !
ExcluirExcelente!
ResponderExcluirMuito bom!!! Perfeito!!!
ResponderExcluirMas e quando ele diz:
"Nos aviões que vomitavam pára-quedas,
nas casamatas, casas vivas, caso morras
e, nos delírios, meus grilos temer:"
Será que ele se refere a um soldado? Ou seja, será que uma foi uma experiência vivida por um soldado???
Abraços.
Oi, Leila!
ExcluirRealmente esses trechos são muito difíceis. Tenho uma certa dificuldade em contextualizá-los com a situação da música.
Penso que falem sim de um soldado. Acho que Zé Ramalho comparou a tensão do dia-a-dia de um militar com o do eu lírico.
Obrigada,
Abraços.
Na minha interpretação, os aviões vomitando pára-quedas se referem ao esperma em uma ejaculação (na hora da traição). Os pára-quedas seriam os seus espermatozóides, na tentativa de sobreviver (os seus genes) nas casamatas, "casas vivas" (a amante). "Caso morras", ou seja, caso ele morra, a propagação da sua linhagem está garantida.
ExcluirIsso tem um sentido grande...
ExcluirDe qualquer forma a musica da varios pensamentos abistratos..
tem sentido
ExcluirConcordo com vc
ExcluirFala sim de um soldado, mais precisamente de um paraquedista das forças aliadas no dia D (invasão da normandia, segunda guerra), eles vieram de madrugada com baixa visibilidade para conquistar objetivos-chave antes da invasão principal de manhã. Devido à baixa visibilidade os paraquedistas se espalharam por varios quilometros e usaram um dispositivo metalico que imitava um som de um grilo alem de uma resposta e uma pergunta combinadas para saber se quem vinha era um aliado ou um alemão
ExcluirPensei a mesma coisa.
ExcluirEu amei essa interpretação e confesso que ouvi muitas vezes essa música para eu compreender melhor. As músicas dele tem muito haver com ele mesmo, pessoa inteligente, misteriosa e de sensibilidade ímpar. Obrigada Thamires por compartilhar conosco sua visão!
ExcluirLeila Cordeiro,
ExcluirCom relação à estrofe:
"Nos aviões que vomitavam pára-quedas,
nas casamatas, casas vivas, caso morras
e, nos delírios, meus grilos temer"
Seguindo a interpretação da autora, sobre o conflito entre o casamento, a traição e os medos de quem vive essa situação, entendo o seguinte:
Casamata é uma fortificação em que militares constroem para abrigar soldados durante uma guerra e elas são o temor dos soldados paraquedistas que se lançam de um avião e constituem em alvos fáceis para aqueles soldados, entocados, com metralhadoras. Ou seja, esses paraquedistas podem morrer facilmente, mas por sorte sobreviverão... Porém, algo é certo, eles descerão de encontro a esse destino independente de vida ou morte, portanto, caso eles vivam, caso eles morram... É uma incógnita que pode levar o soldado à loucura.
Nesse contexto, acredito, que Zé Ramalho, externa seu conflito fazendo uma analogia. E como os soldados que descem inevitavelmente para a vida ou morte, ele também o faz, com seus delírios, ainda que temeroso...Com aflição...
Abraços aos que curtem o Zé...
Pensei algo parecido. Imagino que seja uma reflexão sobre os riscos da decisão. Os medos e a entrega a incerteza.
ExcluirSeguindo a linha de raciocínio de vocês. Vamos lá se pegar a analogia, casamatas fortificação para soldados. Logo podemos fazer analogia ao saxo escrotal, testículos e etc. Nos aviões que vomitavam para-quedas. Podemos levar em conta que se trata do pênis e da ejaculação. Orgamos... Caso vivas, caso morras. Pode ser interpretado como gerando um fruto nesse ato de vomitar/ejacular para-quedas/esperma ou simplesmente morte do soldado/esperma que caí em uma área isolada. Como gozar na cara ou morrer por remédios/tiros. Percebem a analogia? É como eu gozar dentro e escolher se ele vira um feto ou não, é como eu pular em um ponto de guerra e torcer pra não ser alvejado. Não sei se concordam. Mas eu entendo assim.
ExcluirFantástico....
ResponderExcluirObrigada! =D
ExcluirA explicação do casamento: a traição de sua natureza ou a traição de sua esposa...
ResponderExcluirParabéns pela interpretação, ser entre a serpente e a estrela...
O que eu acho mais fantástico na música é a analogia entre a doença sífilis e o casamento.
ResponderExcluirExcelente! Parabéns!
ResponderExcluirLetra reflexiva e fantástica! O dom de fazer música no Brasil já não existe há muito tempo. Pra mim, também não importa, pois eu sobrevivo aos clássicos antigos: Zé Ramalho, Djavan, Milton Nascimento, Flávio Venturini, Lô Borges, Chico Buarque, Tim Maia... Parei por aqui, senão... Rsrsrs...
ResponderExcluirEu acho que a mídia se esforça muito (e consegue) para que a gente pense que não há mais música de qualidade, mas há sim gente... vamos pesquisar e divulgar porque tem muita coisa boa mesmo.
ExcluirBeijo carinhoso procês tudim.
Realmente.. Era uma vez a musica brasileira.
ExcluirPoxa amigão....gostei!
ResponderExcluirInfelizmente, a bem da verdade, o Zé não continuou com a mesma " pegada " do início de carreira com os MARAVILHOSOS ZÉ Ramalho 1978 e Zé Ramalho 1980, que indiscutivelmente são os seus discos mais belos, com os maiores arranjos de sua carreira...um dos sumos da música nordestina! Nos anos 80 ele parece ter perdido o " toque de midas ". Mas é um gênio! O seu jeito de cantar meio que recitando é coisa de gênio, de quem é bom.
ResponderExcluirO ano era 1979. Entre uma das suas muitas idas e vindas do sul pro nordeste e vice versa, Zé Ramalho alugou uma casa na praia de Manaíra, em João Pessoa, e fixou na fachada da mesma uma placa com os dizeres: "Vila do Sossego". A casa entao se tornou ponto de encontro de poetas, repentistas e cantadores da região. Foi nesse ambiente e nesses encontros e da leitura de clássicos da literatura mundial, como 'Vôo Noturno', de Antoine de Saint-Éxupery ('nos aviões que vomitavam pára quedas') e de 'Papillon' de Henri Charrière ('em seus papiros, Papillon já me dizia') surgiu a inspiração pra compor "Vila do Sossego".
ResponderExcluirSeu comentário é o encaixe perfeito para o que ainda restava de duvidas na interpretação!!!
ExcluirCaraca Thamirys Pereira, você arrebentou, muito bom e parabéns!
ResponderExcluirMuito bom cara! Parabéns e que seja eterno enquanto dure! precisamos de pessoas com afinidade nas palavras como você, amo música bem como em especial esse artista. Forte abraço e que os anjos te abençoe sempre. Maravilhosoooo.
ResponderExcluirÓtima interpretação!
ResponderExcluirGostei da sua linha de pensamento, mais ainda fique confusa com a parte Nos aviões que vomitavam pára-quedas, já pensei e tudo analisei mas não chego em uma conclusão.
ResponderExcluirqueria saber mais sobre o título da música, que não foi citado tb na interpretação... Acredito que sua interpretação seja tão importante quanto a música. Gostei muito da análise, obrigada!
ResponderExcluirZé Ramalho Altamente fodástico como sempre.
ResponderExcluirmuito boa interpretação.
ResponderExcluirTrata-se de um GÊNIO, portanto "traduzir" suas obras é tarefa árdua. Muito boa interpretação, esclareceu bastante as entrelinhas da música.
ResponderExcluirsempre achei que a vila do sossego falasse um pouco sobre a segunda guerra mundial... mais achei bem pensado isso tambem
ResponderExcluirNa condição de fã do trabalho musical de Zé Ramalho, reclamo uma decodificação das suas letras. Vila do Sossego é uma que reclama dicas do cantor. Facilitaria a nossa vida.
ResponderExcluirSempre que escuto esta música, fico tentando entender seus versos. Você me ajudou um pouco!
ResponderExcluirMuito boa interpretação - Na verdade Zé Ramalho era amante e apaixonado por uma mulher casada da alta sociedade na época da composição...fez também a música Chão de Giz em cima da mesma base.
ResponderExcluirParabéns, muito boa a interpretação.
ResponderExcluirSó fico a pensar se na canção o eu-lírico realmente chegou a consumar o ato da traição.
Quando ele fala que os gametas agrupam no seu som penso que ele utiliza-se da música como válvula de escape (espécie de catarse) pra conter todo aquele impulso sexual, e acaba ao final recorrendo a fé para sair daquela aflição, tentação.
Muito legal! Show a matéria
ResponderExcluirAinda fico intrigada com a parte que fala dos Avioes que vomitavam paraquedas... mais gostei da interpretaçao
ResponderExcluirAcho que tudo isso era só um jogo de palavras na verdade Zé é sim um repentista do nordeste moderno e tudo que lia transformava em letras de musica em forma de rima, tanto é que força verde deu no que deu plágio.
ResponderExcluirQual o significado do titulo "Vila do sossego"?
ResponderExcluirMuito bom! Sempre tive dúvidas a respeito dessa música. (Na verdade ainda tenho). De uma coisa é certa, a música fala sobre as dificuldades de um casamento
ResponderExcluiruau! incruvin! obrigado pela tua análise.
ResponderExcluirEu tinha visto em um site que A Vila do Sossego era uma casa da sua tia que localizava-se em João Pessoa
ResponderExcluirEle querendo recuperar suas raízes nordestinas voltou a casa de sua tia e colocou uma placa escrita "Vila do Sossego" e artistas ali da regiao se encontravam para discutir sobre arte, cantar músicas e entre outras coisas
Tinham pessoas que os chamavam de viados e até agrediam eles
Zé completa dizendo que as coisas que aconteciam lá eram muito loucas
A interpretação é bem válida, afinal a arte é aquilo que nos toca.
ResponderExcluirMas como eu também escrevo, sei que muitas vezes a explicação da mensagem é muito mais simples.
Ao meu ver, ele relata o momento que ele vive, lendo, se preocupando com os problemas do mundo, saindo com um monte de mulher, com medo da sífilis, sendo cobrado pra casar, em conflito com sua religiosidade.
No fim, é como se fosse a adolescência de todo mundo a música. Onde os problemas do mundo e de quem está próximo são muito maiores do que os próprios problemas. É o estado de sossego, onde você tem tempo de divagar sobre as coisas que afligem os outros.
A interpretação sobre o treponema é de extrema argúcia.
ResponderExcluirMuito bom.
ResponderExcluirInterpretação simplesmente fantástica.
Uma interptetação que nos faz pensar sobre a traição que podemos cometer com o outro e com nós mesmos.....
ResponderExcluirA adrenalina de uma tradição pode facilmente ser comparada a de quem salta de paraquedas, ou quem está entrincheirado sob fogo cruzado ou em uma casamata, sem saber de você ou se morre. Se mantém ou se perde o casamento. Se mantém ou troca de parceiro.
ResponderExcluirPerfeita a sua comparação!!
ExcluirAdorei entender! Obrigada por dividir sua interpretação dessa música. Aplausos.
ResponderExcluir~Muito bom, parabéns Thamirys! Subentender as entrelinhas da excentricidade e genialidade de Zé Ramalho não é pra qualquer um, ele transcende a arte de fazer música.
ResponderExcluirEu acredito que quando ele fala “ Nos aviões que vomitavam paraquedas
ResponderExcluirNas casamatas, casas vivas caso morras
E nos delírios, meus grilos temer
Nessa parte ele menciona sim a guerra como sendo algo para muitos preocupante já que se construía casamatas é que vários aviões sobrevoavam e em meio à guerra e soldados tinha a possibilidade de viver ou morrer. Mas para ele isso não o preocupava (um delírio não se preocupar com isso) . Mas o que ele temia era seus grilos, seu próprio medo com a situação vivida por ele e sendo a traição vista como pecado ele sempre menciona o fato de se benzer ou que casamento É um sacramento como abaixo. Então esses na verdades eram seus grilos, enquanto para muitos a preocupação era a guerra
O casamento, o rompimento, o sacramento, o documento
Como um passatempo quero mais te ver
Ô, ô, ô, ô, com aflição